Ridicularizar a dúvida de
quem pergunta é, em qualquer área, não só uma arrogância, como algo que pode
descambar para um elitismo, quando isso se torna barreira para o acesso ao
conhecimento sobre o que se dúvida – o objeto da pergunta. É também uma atitude
de conservadorismo, comparável àqueles românticos que, contra o racionalismo
revolucionário francês, queriam manter o irracionalismo da tradição místico-religiosa.
É uma atitude comparável às antigas seitas e ao que faziam os “sábios” videntes
da Grécia antiga: nada mais, nada menos do que impedir o acesso ao que se quer
saber aos não-iniciados – atitude contra a qual se voltaram primeiramente os
guerreiros gregos e em seguida os filósofos, e que é contrária ao principio de
isonomia que está na base da democracia e da racionalidade. Querer restringir o
uso da razão em relação a qualquer coisa terá sempre como conseqüência uma má
herança destas atitudes elitistas e conservadoras.
Quando alguém não entende, não conhece, o mais comum é ou
perguntar; quando a pessoa se cala, isto pode ser sintoma de uma timidez ou
medo de parecer menos inteligente que os demais “sabidos”. Pelo menos
“perguntar” foi o que todas as professoras nos ensinaram.
Mais recentemente há uma crescente onda de desprezo pelo
ato de perguntar: duvidar é “querer saber” (o que não vejo problemas), ou
melhor, “querer dominar” (e aqui entendo a crítica). Obter uma resposta,
pensam, significa se satisfazer, sentir um gozo por dominar o objeto de
conhecimento e poder utilizá-lo, obter uma definição que “fecha” a
possibilidade de novas definições e percepções por sobre o objeto, etc.
Ora, se isso tudo é verdade, eu não veria problemas em
sentir um prazer por conhecer um objeto (dominar); acho até mesmo natural ao
ser humano, uma vez que esse conhecimento foi possibilidade de sobrevivência da
humanidade por sobre a Terra – como pensam os sociólogos Theodor Adorno e Max
Horkheimer. E acredito que todo animal (classe da qual os humanos fazem parte)
gostam naturalmente de sobreviver...
Agora, se querer saber significa “querer dominar”, no
sentido de obter uma definição imutável e que leva a pessoa a acreditar que
sabe tudo sobre o objeto, então há um problema, já que quase sempre (ou sempre)
as definições dos seres humanos sobre as coisas estão equivocadas e precisam
ser revistas e porque nunca a fruição de um objeto pode se esgotar tão
facilmente.
Mas não parece
que seja verdade que seja assim. Uma pessoa que tem uma definição como resposta
a uma questão do tipo “o que é...?” não fica satisfeita e pensa saber tudo
sobre aquilo. Há, por outro lado, uma caricatura de que as coisas ocorram
assim, inspirada talvez por uma visão de que em uma sociedade como a atual, na
qual “a ciência ocupou o lugar que outrora foi da religião”, as pessoas se
satisfaçam com definições objetivas e “reducionistas” sobre as coisas. Bem, é
preciso demonstrar que as pessoas realmente ajam assim de forma tão estúpida
(algumas dezenas de exemplos me convenceriam); sabemos que, pelo menos os
cientistas não o fazem: se tomarmos o exemplo mais costumeiro, a “água”, vemos
que os cientistas não pararam suas pesquisas quando descobriram que a água é
H2O, pelo contrário, prosseguem buscando mais informações, com vistas até mesmo
de solucionar questões como reproduzir a água.
Na verdade não
acredito que haja definições suficientes para os objetos, ou seja, que um
objeto possa ser definido em todo o seu grau de potência. E isso não é nenhum
problema para o conhecimento ou para a possibilidade de nos comunicarmos.
Wittgenstein em suas Investigações Filosóficas diz algo que deveria parecer óbvio que
é o fato de que não precisamos de definições para saber o que significa uma
palavra. As pessoas geralmente não têm definições claras das palavras que
utilizam e isso não impede seu uso e a comunicação: para o filósofo, o
significado de uma palavra se dá no uso. Eu por exemplo não sei definir “amor”,
mas sei o que a palavra significa. E melhor ainda, sei utilizá-la de forma
eficaz! Sei distinguir “amor” de ciúme, de carinho, raiva, etc. E isso não me
leva a pensar que sei tudo sobre o amor. É possível até que se um dia eu
chegasse a pensar que sei tudo sobre o amor, eu estivesse enganado; é possível
que o amor se modifique ao longo do tempo e ao longo dos séculos, que seja,
pois, um conceito “aberto”, não passível de ser definido.
Assim, se
alguém me perguntasse o que é o “amor”, eu não saberia dar uma definição, mas poderia
tentar esboçar uma possibilidade de acesso para essa pessoa a partir de
características vagas. Como é possível que essa pessoa me entenda eu não sei, e
isso é motivo para muita controvérsia entre filósofos da linguagem. Mas o que
quero chamar atenção aqui é a possibilidade de darmos explicações sem esgotar o
objeto em uma definição “fechada”.
Da mesma forma
que não haja problemas para o conhecimento aqui, também não deveria haver o
temor de que a dúvida, o desejo de explicações, descambe para um reducionismo.
Porém, é o que ocorre muitas vezes, nas mais diversas áreas, mas muito
comumente nas artes, especialmente em relação às chamadas artes contemporâneas,
como por exemplo, a performance.
Talvez mesmo
porque haja um afastamento da arte contemporânea da sociedade (seja ele
justificado ou não – não cabe discutir aqui), há uma grande demanda de
explicações a seu respeito, inversamente proporcional à falta delas. Pelo que
dizem normalmente aqueles que são interrogados parece mesmo haver o temor acima
citado, que leva muitas vezes ao desprezo pela pergunta, figurado em uma tergiversação
em relação ao problema da suposta necessidade das definições demandada pela
sociedade cientificista.
Que esse temor
possa ser justificado por uma idéia distorcida de que a sociedade foi realmente
tão infantilizada pelo cientificismo (exceto, claro, tais pessoas), é
amplamente compreensível, porém, tal atitude apenas ratifica a situação atual
de afastamento das artes em relação às grandes massas, culminando não só na
repulsa pelo que há de mais avançado na arte contemporânea, mas no que é pior,
na sua esterilidade: naquela costumeira frase “ah, isso deve ser arte”, que no
fundo significa “isso não é pra mim”. E assim, coisas como a perfomance se tornam algo para os
“eleitos”, que co-participam em seu desconhecimento de uma definição rígida,
mas aos quais foi dada alguma porta de entrada, talvez porque, como “eleitos”,
não se temia que esperassem por uma definição “científica” de performance e lhes foram descritos
traços fundamentais a seu respeito, como por exemplo, o de que não pode ser
definida em um conceito fechado – o que não deixa de ser uma explicação
racional, mesmo que porventura mal feita.
E assim, podemos perguntar, por que é que algumas pessoas
podem receber alguma explicação enquanto outras não? Não querendo cair em um
erro comum às pessoas que realizam críticas, que é atacar supostas más
intenções subjetivas, em primeiro lugar, pois, não tenho acesso a elas e em
segundo porque não acredito que sejam ruins neste caso, suponho ser plausível
apontar que, de qualquer forma, fatos assim servem com sucesso ao
conservadorismo da sociedade dividida tradicionalmente entre as elites
culturais e as massas, embora a própria performance
art, como muito do que se faz hoje em arte contemporânea tenha surgido na
contramão disso tudo: mas é muito mais comum do que se imagina que o
conservadorismo e atitudes elitistas estejam amplamente intrincadas nas que se
pretendem revolucionárias.
(Ouro Preto, 24 de maio de
2012)