Plano de Ensino e Aprendizagem de
Filosofia – Enrique Marcatto Martin
A seguinte proposta, que leva em
conta a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB 9.394/96, a
Constituição Brasileira, o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, o
disposto nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN, as Orientações
Curriculares para o Ensino Médio – Ciências Humanas e suas Tecnologias: Ensino
de Filosofia (2006) e a Proposta Curricular para o Ensino Médio do estado de
Minas Gerais (CBC), pretende fornecer uma explanação de minha estratégia
didática, a qual considero adequada ao ensino de filosofia no ensino médio. Entretanto,
não constitui uma forma rígida e imutável de prática pedagógica, sendo
adaptável a várias situações educacionais e propostas pedagógicas específicas. Desta
forma, não pretende substituir os documentos acima e muito menos a proposta
pedagógica da escola na qual for aplicada.
INTRODUÇÃO
Estudar filosofia
é algo que é distinto de estudar outras disciplinas como biologia ou matemática.
No caso destas matérias, estudar é uma questão de entender e assimilar os
resultados alcançados pelos biólogos e pelos matemáticos, conforme passados
pelo professor e raciocinar sobre eles. Mas em filosofia não há algo como resultados
a serem ensinados e compreendidos pelos alunos. Isto porque quase tudo aquilo
que é estudado pelos filósofos, isto é, os problemas filosóficos, estão em
aberto; isto significa que não há uma concordância entre eles quanto à sua
solução. Há várias respostas diferentes para as diversas perguntas e problemas
filosóficos com mais de mil anos continuam a serem discutidos, levando a cada
vez mais problemas, aparentemente, também sem solução simples.
Desta forma,
há duas formas costumeiras de se estudar e de se ensinar filosofia:
a) Estudar/ensinar a história da filosofia
b) Estudar/ensinar problemas filosóficos
A primeira forma (a) tenta lidar com a filosofia como se fosse uma
disciplina comum e apagar a sua especificidade, fazendo do pensamento dos
principais filósofos da história seu objeto a ser compreendido e aprendido pelos
alunos. Caberia ao professor, apresentar e contextualizar cada filósofo, explicar
a estrutura do problema que ele lida e a resposta que dá a este.
O ensino de história da filosofia (a), razoavelmente comum, é bastante improdutivo
e só será atraente para aqueles alunos já interessados previamente em
filosofia, uma vez que, para a grande maioria das pessoas, não há razão alguma
para se querer saber o que disseram pessoas há muitos séculos atrás sobre assuntos
que não lhes interessam – ainda que estas pessoas sejam famosas.
A segunda
forma (b) consiste em apresentar os grandes problemas filosóficos e as
respostas que alguns pensadores ofereceram a elas. Esta é mais eficaz que a
primeira e mais interessante, uma vez que, normalmente, as questões clássicas de
filosofia são aquelas perguntas que naturalmente as pessoas também se fazem.
Portanto, esta forma pode gerar discussões em sala de aula e maior participação
dos alunos. Deste modo, é inicialmente mais atraente aos estudantes, pois, interessados
nos problemas filosóficos irão querer saber quais respostas os filósofos
apresentaram a eles.
Esta tática,
porém, é temporalmente limitada, já que é exaustiva e acaba por gerar grande
incomodo por parte dos alunos. Além disso, as discussões, por mais divertidas
que possam ser para os alunos, tendem a se tornarem vazias de conteúdo, pois
esses interpretam que basta expressarem suas opiniões, reproduzir ou não a
opinião de um filósofo e concordar ou não com ela. Há ainda um problema
principal e que se aplica ainda ao ensino de história da filosofia (a).
A UTILIDADE DA
FILOSOFIA
A questão da
utilidade da filosofia é quase tão antiga quanto à própria filosofia e a
demanda por conhecimentos considerados úteis atinge não só o ensino de
filosofia, como todas as disciplinas. Deseja-se conhecer coisas úteis, isto é,
que sejam instrumento para algo. Conforme descreve Desidério Murcho[1],
atualmente na educação algumas correntes instrumentalistas são 1) a educação
para a vida ativa; 2) a educação para cidadania; e 3) a formação para o mercado
de trabalho.
Costumeiramente,
os professores de filosofia aprenderam a lidar com esta demanda problematizando
a própria definição do que venha a ser “útil” e os motivos pelos quais se
procura sempre a utilidade. De fato, é importante que tais coisas sejam
colocadas em causa, uma vez que a busca incessante por aquilo que é útil atende
a critérios imediatistas que muitas vezes são equivocados. Muito do que é útil
em um determinado momento não o é em longo prazo. Em nosso território específico,
muitos conhecimentos práticos e úteis em curto prazo já não servem para nada em
pouco tempo, enquanto conhecimentos centrais, como a matemática não aplicada e
a gramática, não deixam de ser úteis assim tão facilmente, uma vez que formam a
base para outros conhecimentos.
Mas
e a filosofia, é útil ou inútil? Ora, simplesmente saber o que disseram Platão,
Aristóteles, Kant, Sartre e Heidegger sobre determinado assunto, aparentemente
não tem mais utilidade para a vida ativa, para a formação da cidadania ou para
a formação para o mercado de trabalho do que saber se um ator famoso é casado ou
não, se não se tem interesse por estes assuntos. Um estudante que porventura
queira fazer, por exemplo, um curso de direito poderá passar no exame de
seleção, se formar advogado e trabalhar sem nunca saber o que disseram
Aristóteles, Hobbes e Locke sobre as leis e sobre o Estado civil. Desta forma,
estudar história da filosofia ou certos problemas de filosofia, e a resolução
que alguns filósofos encontraram para eles, não são coisas imediatamente úteis.
Porém,
a partir da problemática que envolve a “utilidade” podemos assumir que não há
problema algum nisso e que saber algo que não serve para nada prático não é
nenhum problema. Qual é o problema em saber algo ainda que este algo não sirva
para nada? Muitos professores partem desta premissa e enveredam pelas formas
(a) e (b) de ensino de filosofia: aprender filosofia será, então, compreender
ou o pensamento dos grandes filósofos (a) ou compreender os grandes problemas
filosóficos e suas resoluções (b), o que por si só já tem valor.
Entretanto
não seria melhor para os alunos se além de obter este conhecimento, ele
servisse para alguma coisa, ainda que em longo prazo? Será verdade que a
filosofia é inútil?
Bem,
é possível que mesmo o ensino de história da filosofia ou de problemas
filosóficos possa ser útil em alguns casos, em longo prazo, mas em um sentido
mais fraco, pois o simples movimento do aluno de se esforçar para aprender,
compreender e refletir sobre o assunto é importante, como é importante estudar
matemática independentemente de utilizá-la ou utilizar parte dela no futuro.
Entretanto, é
preciso levar em consideração que, para os alunos, inicialmente, não faz
sentido saber o que filósofos e pensadores de séculos atrás disseram, bem como
alguns questionamentos parecem infundados ou sem sentido. Eles têm preocupações
diferentes e mais imediatistas (ainda que plenamente justificadas), como saber
o que irá cair no Exame Nacional do Ensino Médio ou em algum concurso, bem como
saber se o que aprendem terá aplicação na vida prática. Ora, ainda que a
filosofia estudada nestes formatos possa ter um pequeno aproveitamento prático
e que possa ter alguma aplicação na preparação para tais exames, não será a
explanação sobre este aspecto, em uma ou mais aulas introdutórias da disciplina
de filosofia, que os fará ter interesse durante o resto do ano pela matéria.
É
possível, porém, que a filosofia, bem trabalhada desperte, não só o interesse
dos alunos, como concorra para o desenvolvimento de competências completamente
úteis a curto e em longo prazo. O ensino de filosofia só será inútil ou, no
máximo, útil neste sentido fraco se se reduzir às duas formas (a) e (b) de
ensino. Ou seja, ainda que a filosofia não necessariamente precisasse atender a
tais demandas, como a matemática não precisaria, ela pode ser mais bem
trabalhada e tornada útil, bem como a utilidade da matemática pode ser
maximizada, quando se estuda coisas que realmente serão utilizadas na vida
prática – o que não apaga o fato de que são importantes independentemente de
sua utilidade.
EDUCAÇÃO PARA A
AUTONOMIA
Há outra
alternativa para o ensino de filosofia que não elimina as duas anteriores e as
absorve como momentos da prática de ensino, que é algo que se assemelha a uma
espécie de engenharia de ideias[2]
ou de ciência do pensamento. Esta
forma de conceber a filosofia não se reduz a um conjunto de conhecimento
estabelecido pela história da filosofia a ser apreendido pelos estudantes, passado
e cobrado pelo professor, mas sim se utiliza dos elementos desta para refinar a capacidade dos estudantes de
raciocinar. Tira proveito também dos problemas filosóficos e das discussões que
eles geram, mas não se reduz a apresenta-los e a incentivar que os alunos
discutam.
Este
modo de ensinar filosofia dá atenção ao pensamento dos principais filósofos
visando explicitar seus argumentos e o que está em jogo em cada discussão
filosófica, bem como as nuances do pensamento. Assim, de partida elimina a
divisão entre o ensino de história da filosofia e dos problemas filosóficos,
como também não se reduz a sua mera exposição, pois visa à outra coisa.
Não se trata
também do mero ensino das formas de raciocínio e argumentação, isto é, de
lógica, mas do uso disso para melhor apreensão do material histórico.
Vamos ver como
isso se dá.
METODOLOGIA
Os
seguintes itens, em condições ideais, seguem uma ordem cronológica, mas, de
acordo com a necessidade, esta pode ser modificada ou os itens podem ser
realizados simultaneamente.
1) Diagnóstico
É importante,
de saída, se fazer um diagnóstico de assuntos
provocadores, isto é, problemas que fazem parte do repertório dos alunos,
como assuntos atuais que encontrem eco em discussões filosóficas[3]
– uma tarefa razoavelmente simples, uma vez que há uma grande quantidade de
opções em todas as épocas da filosofia e subconjuntos de áreas e problemas da
filosofia.
O
diagnóstico é importante, pois será fundamental eleger um assunto em voga para
retirar a filosofia de um lugar afastado da realidade dos alunos e gerar
interesse.
O
diagnóstico deve ser realizado no primeiro contato com os alunos, por meio de
conversa informal e apresentação da disciplina, mas precisa ser refeito a todo
tempo e deve balizar o desenvolvimento da disciplina.
2) Introdução de elementos de
lógica e argumentação
Fundamental
para o desenvolvimento da disciplina e para que os alunos aprendam a reconhecer
os argumentos e elementos destes e, em contrapartida, aprendam a argumentar e a
contra argumentar.
A
introdução de elementos de lógica e argumentação deverá ocupar algumas aulas,
mas, assim como o diagnóstico, deverá ser realizada a todo tempo e a cada nova
discussão, visando explicitar o uso da lógica a partir da argumentação dos
alunos e dos filósofos.
3) Introdução aos problemas de filosofia e seus
principais pensadores
Uma
vez realizado o diagnóstico e eleitos os assuntos provocadores, a matéria
deverá ser lecionada explicitando a sua relação com eles, isto é, aproximando
algum tema e pensadores específicos ao assunto, mostrando soluções de forma
dinâmica e dando grande foco ao item 2.
Este
item é inseparável do seguinte.
4) Discussão dirigida de assuntos
provocadores
Como o tema
das aulas busca se relacionar a uma realidade próxima dos estudantes, estes
deverão ser estimulados a apresentar suas opiniões a respeito do assunto
tratado. O papel do professor será questiona-los e discutir suas opiniões
exigindo que apresentem bons argumentos e melhores os raciocínios. Neste ponto,
o pensamento de filósofos e problemas filosóficos clássicos que se relacionem
com o tema da aula, serão elementos importantes para que os estudantes melhores
suas opiniões.
A discussão
não se reduzirá, pois, à expressão de opiniões, mas se dirigirá ao aumento
qualitativo de rigidez argumentativa e, portanto, a um ganho qualitativo na
capacidade dos estudantes a produzirem raciocínios cada vez mais elaborados,
que deverão ser confrontados (e somados) às opiniões dos filósofos. Isto é,
aqui o aluno passa a aprender com os
filósofos (e não mais sobre os
filósofos) a como melhorar as suas próprias ideias.
A discussão
não se limita à discussão oral realizada ao longo das aulas, mas também deverão
ser realizadas atividades de ensaios filosóficos, nas quais serão estimulados a
defenderem uma posição e apresentarem argumentos para ela.
OBJETIVOS
Assim, o
principal objetivo que se espera atingir é contribuir para que o aluno
desenvolva as competências necessárias para atingir a Autonomia intelectual, que é o objetivo geral deste plano de ensino.
O aumento da
capacidade argumentativa e o confronto de ideias, entre as quais as dos
próprios alunos, implicam em raciocínios mais bem elaborados e isso, constitui
um ganho para a autonomia intelectual dos sujeitos. O que significa que os
alunos desenvolverão habilidades cognitivas, reflexivas e críticas, listadas na
Proposta Curricular de Filosofia para o Ensino Médio da Secretaria do Estado de
Educação de Minas Gerais como as atitudes de que a filosofia contribui para que
estes atinjam (objetivos específicos):
a) perceber;
b) problematizar;
c) refletir;
d) conceituar e
e) argumentar
Isto, pois, ao desenvolver a capacidade de perceber o que está em jogo
em uma discussão, em um texto, em um argumento ou um problema da própria
realidade, o aluno, incentivado a isso, tende a problematizar e a refletir e, a
partir disso, conceituar, isto é, buscar sintetizar aquilo que pretende
exprimir e defender sua posição. E isso significa autonomia intelectual que
tende a refletir na própria vida dos alunos.
CONCLUSÃO
A autonomia
intelectual é o serviço que a filosofia presta, propriamente dito, ou seja, a
sua utilidade. Não se trata somente de um conteúdo a ser apreendido e
reproduzido. A ideia é a de melhorar o raciocínio e o pensamento, através do
confronto das opiniões dos alunos ou de ideias corriqueiramente postas na
realidade, com o pensamento dos filósofos e com os problemas filosóficos
imbricados com os temas.
Ora, mas a
autonomia não pode significar apenas que o aluno dê sua opinião, é preciso que
o aluno aprenda a ter boas opiniões,
que aprenda a raciocinar e a defender uma posição. Portanto, ter “boa opinião”
não significa que o aluno deva pensar aquilo que o professor considera que é
correto – isso seria o contrário da autonomia. É necessário que o aluno pense
por si só e que aprenda a pensar. Neste sentido, ter uma boa opinião significa
ter boas razões para pensar algo e saber defender o que se pensa e, ainda,
saber reconhecer os erros de seu próprio raciocínio e mudar de opinião, se, e
somente se, lhe forem apresentadas boas razões para isso.
Assim, é
importante aprender a discutir as diferentes teorias dos filósofos, ao invés de
nos limitarmos a compreendê-las. Aprender a discutir implica, em grande parte, a
aprender a argumentar e a raciocinar.
Quando o aluno
desenvolve estas competências, se pode dizer com segurança que ele estará mais
preparado do que antes para enfrentar novas questões e problemas. Isto
significa que a filosofia não se restringirá a ser certo conjunto complexo de
elementos afastados da realidade e que têm uma utilidade meramente potencial.
Em primeiro
lugar, a própria realidade e as questões que ela nos coloca é que serão a
matéria a ser aproximada da filosofia; em segundo, a filosofia, será plenamente
útil e afiada com as demandas da sociedade: “Ensinar Filosofia, no final do
séc. XX e começos do século XXI, passa a significar formação crítica e torna-se
um elemento decisivo na redescoberta da educação para a cidadania (recuperando
o cerne do movimento socrático-sofístico da Atenas do séc. V a.C.)” (Proposta Curricular para o Ensino Médio de
Filosofia do Estado de Minas Gerais, p. 7).
Desta forma, a
autonomia intelectual é a base para outras competências exigidas pelos mais
diversos segmentos da sociedade e engloba as diferentes concepções de ensino,
desde a de que o ensino deve preparar para o mercado de trabalho, até a de que
deve formar bons cidadãos.
Não basta,
pois, para isso, que os alunos tenham domínio de certo número de problemas
filosóficos, mas sim que tenham as competências necessárias para perceber os
elementos que estão em jogo conforme os problemas lhes são apresentados
(independente de não terem nenhum conhecimento prévio a respeito deles),
refletir sobre eles e saber tomar uma posição bem refletida.
Desta
forma e por fim, a avaliação neste formato de ensino não será a da quantidade e
qualidade do conteúdo apreendido e compreendido pelos alunos, mas sim se estes
alunos tiveram um ganho na capacidade
argumentativa, na percepção de elementos da argumentação e se sabem se
posicionar criticamente.
A filosofia
por si só é importante, como a própria autonomia. Mas isso não significa que
ambas não sirvam para nada além. A filosofia é útil também para quem não se
interessa pelo tipo de conhecimento que ela constitui e não tem interesse algum
em problemas filosóficos, pois o raciocinar filosoficamente implica em ganho de
autonomia intelectual, uma competência fundamental para tantas exigências que
se faz hoje à educação.
[1]
Desidério Murcho, “Para que serve o
Ensino?” Publicado em: http://criticanarede.com/ens_valor.html
[2]
Este termo é utilizado por meu antigo professor Desidério Murcho para se
referir a sua concepção de filosofia.
[3]
Isto deve levar em consideração o Projeto Pedagógico da escola como um todo,
bem como as séries e o conteúdo programado previamente para ser lecionado
(quando for o caso).
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