domingo, 20 de maio de 2012

Crimes de greve?

Terá alguém o direito de obrigar outra pessoa a fazer algo que acredita ser justo?
       Se respondermos “não”, estaremos dizendo que nem Hitler, a Santa Inquisição, os colonizadores espanhóis e portugueses, nem Che Guevara, Antônio Conselheiro e a Revolução Francesa estavam justificados. Se, por outro lado, dissermos que “sim”, estamos aceitando que qualquer pessoa tem o direito de fazer o que quiser, desde que acredite que aquilo é justo – e isso não significa que a coisa seja de fato “justa”. Em comum entre todas essas pessoas e movimentos, é o fato de haverem um conjunto de crenças que acreditavam serem justas e que os impulsionava a fazer algo para torná-las realidade. Tanto Hitler quanto os românticos franceses acreditavam que seus ideais eram importantes e justos o suficiente para, por meio de armas, serem colocados na sociedade, mesmo que para isso precisassem massacrar quem fosse contrário.
        Se algumas pessoas têm forte tendência a aceitar que os revolucionários cubanos tinham o direito de fazerem o que fizeram, é porque pensam que esses lutavam por coisas justas, pois esses estavam se insurgindo contra um regime autoritário e injusto, enquanto que terão tendência a pensar, por exemplo, que os colonizadores da América não tinham o direito de impor aos índios seu modo de vida, por isso se tratar de uma injustiça. Mas, e se retrocedêssemos no tempo e começássemos a pensar como pensavam as pessoas daquela época, acreditando ser justo a “humanização” dos índios, por diversos e loucos motivos? E se fossemos alemães na época do surgimento do nazismo, não pensaríamos ser justo o que fazia Hitler e sua corja de assassinos? Estaríamos, pois, justificados a assassinar judeus e índios, coisas que hoje a maioria das pessoas pensa ser errado? É claro que não e é por isso que ninguém está justificado a fazer qualquer coisa somente porque pensa que essa coisa é justa. Há limites para a liberdade.
            Hoje, é muito comum pensarmos que estamos justificados a nos levantar contra quem é avesso ao ideário de esquerda. Trazendo para os acontecimentos desta semana – a greve dos professores da Universidade Federal de Ouro Preto –, pensamos estar justificados a interromper a aula de qualquer professor que esteja “furando” a greve, pois esta é justa, mesmo que assim firamos sua autonomia e sua crença de que o “justo” é que ele continue com suas aulas.
Ora, de fato, um “fura-greve” parece causar alguns danos ao movimento que acreditamos ser justo.
Em primeiro lugar, nos parece justo lutar contra o afastamento da academia da “tarefa da reflexão e da produção de conhecimento que beneficiem a sociedade como um todo. Temos uma universidade debilitada, avaliada não mais em razão de sua função social e cultural de caráter universal, mas centrada na particularidade das demandas do mercado, na pedagogia dos resultados e produtivismo” (retirado do Boletim do Comando Local de Greve, de 16 de maio de 2012). Há uma série de pesquisas que se dedicam a demonstrar que o Ensino, reduzido ao seu valor instrumental, acaba por formar pessimamente seus alunos, entre os quais indico o texto do professor do departamento de filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto, Desidério Murcho, “Pra que serve o ensino?” (disponível em: http://criticanarede.com/ens_valor.html).
Um dos objetivos principais da greve é forçar uma discussão com o governo a respeito da má qualidade de ensino e produção de pesquisa e conhecimento praticada hoje nas universidades públicas brasileiras, uma vez que não há no nosso país o debate público de idéias, sobre bases racionais, senão quando há uma pressão da opinião pública ou alguma interrupção de serviços.
            Nesse sentido, a proibição de qualquer atividade de ensino durante a greve – decidida sob deliberação democrática dentro da Associação dos Docentes (ADUFOP), isto é, mediante uma votação em que a maioria ganha –, atende ao seguinte pensamento: a ininterrupção das atividades de ensino por parte de algum professor ou de um grupo de professores pode enfraquecer o movimento, tanto perante a opinião pública e a imprensa, como causar insegurança. De fato, o movimento grevista tem mais força de negociação e discussão com o governo caso seja coeso.
Talvez possamos questionar se a decisão de um ou outro professor de não aderir à greve, pode realmente causar dano tão grande ao movimento: aparentemente não, desde que não se torne uma prática largamente realizada. E assim, analisando o peso dos danos individuais, parece que o dano à liberdade do professor é maior do que o infligido ao movimento de greve. Podemos sim, acreditar que tal professor age erroneamente, pois não aceita a autoridade do que foi decidido democraticamente, e assim, transgride a “lei”. É assim que as coisas funcionam em uma democracia e tal professor deve respeito ao que foi decidido em assembléia, tenha ele participado dela ou não. Mas por outro lado, ao longo da história, consideramos como “heróis” indivíduos que se levantaram contra decisões da maioria, por considerá-las injustas – não me parece o caso, mas a humanidade sempre se enganou a respeito de coisas parecidas.  
            Porém, um professor que decide dar aulas durante o período acadêmico, à revelia da suspensão do calendário acadêmico, acaba por prejudicar aos alunos, uma vez que este terá ainda outras disciplinas para terminar quando do fim da greve. Sem contar que o aluno deverá aceitar essa decisão do professor por sua figura de autoridade e por temor de ser “marcado”. E aqui há um dano sério à liberdade do aluno.
      Assim, nos parece totalmente justo e justificado proibir o “fura-greve” de exercer atividades de ensino (lembrando que atividades de pesquisa, orientações e algumas aulas são permitidas, mediante informa à ADUFOP) – e isso eu digo àqueles que como eu apóiam a greve e se sentem ofendidos com os “fura-greve”.
     Ora, mas se estamos justificados a fazer isso, estariam outros grupos que se organizassem democraticamente também justificados a, por exemplo, obrigar os professores a retornarem às aulas, pois isto lhes parece justo? Se os discentes houvessem, ao invés de apoiado a greve, ido contra ela por pensar que ela fere seus direitos, poderíamos retirar os professores de seus lares e sob gritos levá-los até dentro da sala de aula? 
        É obvio que não pela lei, já que há o direito à greve por parte dos professores, enquanto não se pode forçar seu fim senão por alguma decisão judicial. Mas enquanto falamos de liberdade e justiça em um sentido mais profundo que nem sempre coaduna com o que está expresso na constituição – várias vezes considerada injusta e por isso mutável –, podemos perguntar por um direito mais amplo de qualquer pessoa fazer aquilo que bem entenda, desde que isso não cause danos a outrem, o que parece totalmente defensável.
         E aqui há uma grande dificuldade de avaliarmos quem tem mais direito, uma vez que a prática generalizada de “furar” a greve pode causar grandes danos ao movimento e aos alunos, como também a imposição da greve por sobre os “fura-greve” causa também um dano à sua liberdade pessoal.       
          A única saída que consigo pensar para isso é o diálogo com os fura-greve, de forma a tentar convencê-los – que na realidade é a diretriz que o Comitê de Greve se propôs a seguir. Porém, caso contrário, precisaríamos esquecer os problemas filosóficos, aceitar que podemos errar, e aceitar a injustiça que é imanente à democracia majoritária: talvez nunca ao longo de sua história tenha havido consenso a respeito de nenhuma de suas decisões e isto significa, em ultima instância, que sempre houve quem tivesse sua liberdade diminuída em relação a algum assunto. Porém, não conheço outra forma de se modificar as coisas.
Neste caso, que vença a democracia... E neste momento, ser democrático é respeitar o que foi e for decidido nas Assembléias de Greve.        

(Agradeço aos grandes amigos Aluízio Couto e Sagid Salles pelos questionamentos – na verdade grande parte dos que estão acima – que deram fruto a esse texto, com o qual eles provavelmente não concordarão. E assim discordaremos mais uma vez, e mais uma vez discutiremos. Mas é assim mesmo que se faz filosofia seriamente: talvez a maior demonstração de respeito à Liberdade e à Tolerância que já tenha existido!)

(Ouro Preto, 20 de maio de 2012)

10 comentários:

  1. eu gostei do texto, só fiquei pensando que tipo de democracia está baseado no texto? porque há variações do que consideram como democracia. se seria a escolha da maioria, mas não acho que todos os professores tenham votado, assim como foi na unb - que só foram 120 professores na assembléia - e porque não se pode furar uma coisa que não foi votada e aceita? A gente pode votar em alguém para "comandar" o país naquela hora e não vencer, e só por isso você tem que aceitar? E a liberdade de protestar contra esse político que você não quis? Se for aceito tudo o que é colocado porque foi votado democraticamente, não estaremos exercendo nossa liberdade... posso estar falando besteira. Mas foi o que pensei com o seu texto.

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    1. Oi, Nena, que bom que gostou.
      O texto está baseado no tipo de democracia que regeu a decisao a respeito da greve, que penso ser o mesmo tipo das eleições politicas brasileiras. Não sei a conceituar exatamente, até mesmo porque há controvérsias a respeito de tais definições. Seria "majoritária" ou talvez "sistema eleitoral majoritário"?
      Bem, o fato é que nesse tipo de decisão, não faz diferença se você votou naquilo que foi decidido ou não e nem se você nem sequer participou da assembléia (não votou).
      A resposta prática à sua pergunta de se se tem de aceitar é: sim. É assim que funciona.
      Seu eu votasse no Serra, eu não teria direito (liberdade) de ser governado por ele. Se eu não tivesse votado em ninguém, eu não poderia ser governado por Ninguém. Essa é a regra do jogo.
      E é assim que funcionou na decisão pela greve aqui na UFOP: alcançado um quorúm específico, votasse. Após isso vence quem atingir 50% mais 1.
      Concordo com o direito de protesto e não vejo problemas em relação a isso quanto ao texto.

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  2. Um professor substituto conta como um fura-greve?

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    1. Ótima, pergunta, Rodrigo!
      Aparentemente sim. E acredito que o professor substituto, por não ser parte do Sindicato, não tem direito a voto. E aí sim temos um problema. Pois está submisso a algo do qual não faz parte.
      Mas ainda fica o argumento do dano causado aos alunos.

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    2. No meu caso,sou bancaria e nao quero fazer greve. Tb nao sou sindicalizada. Vc cre que isso se aplica a mim? No csso de um presidente votado,nao tenho como destitui-lo,mas a greve eu posso furar. Posso nao compactuar c algo que nao quero.

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  3. Entendi o seu ponto de vista. É porque como você mesmo falou, não há uma definição precisa. De acordo com essa forma de democracia, então seria como se aqueles que não votaram ou não participaram estavam votando em branco.
    Mas acho válido sim essa greve, e acho que todos deveriam aderir por ser uma situação que afeta diretamente todos eles.
    E para mim, qualquer tipo de protesto é válido, pois é uma forma de manifestação por algo que se acredita verdadeiro e correto - mesmo que para outros não seja.

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    1. E também é válido o protesto dos "fura-greve".
      Porém, todo protesto tem regras a serem seguidas e o fura greve não pode simplesmente ignorá-las e retornar às aulas.

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    2. Aluízio Couto02:53

      Enrique, ainda vou responder com mais calma, pois o texto é bom e não dá para objetar sem a devida calma. No entanto, tenho uma pergunta mais imediata: o que você diria no caso em que um professor fura-greve, ao furar a greve, não prejudica aluno algum? Imagine uma classe de 10 alunos que queiram continuar tendo aulas normalmente sem prejuízo seja para eles ou para o professor.

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    3. Acho que ele tem direito a isso, desde que deixe claro para todos os alunos que eles tem o direito de não frequentarem as suas aulas durante a greve, que os alunos se sintam livres para assistirem ou não assistirem sem o temor de serem prejudicados depois e que ele reponha as aulas para os alunos que não assistirem. Caso se torne algo praticado em larga escala, enfraquecendo o movimento, aparentemente ele não teria o direito "constitucional" de fazer isso e seus colegas poderiam tentar impedí-lo. Porém, se isso se tornasse algo praticado em larga escala, talvez fosse o momento de rever a greve, chamando nova decisão.

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  4. Renata23:21

    Enrique, achei seu texto impecável e me identifiquei muito com o fato de você tratar pontos menos 'clichês' da problemática da greve. A começar desse vício, dos grupos mais 'engajados',de sempre se ir contra o que se aproximar da Direita. Às vezes acho que as pessoas pensam que ser 'conservador' - termo que aliás não é muito preciso - é ser reacionário ou alienado. Há que se lembrar que greve é um direito, e não um dever. No caso estudantil, nem chega a ser um direito jurídico, mas uma declaração simbólica. Claro, um fura-greve ofende os grevistas. Mas vemos o tamanho da intolerância quando pensamos na situação oposta: tirar um professor de sala é tão absurdo quanto tirá-lo de casa para dar aula.
    Acho que é um risco muito grande tomar a visão pessoal de justiça como justificativa para qualquer tipo de pressão. Então, apesar de concordar e apoiar a greve pelas causas, não sei ainda se concordo com os métodos.

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