segunda-feira, 28 de maio de 2012

Conservadorismo e elitismo em relação à performance


         Ridicularizar a dúvida de quem pergunta é, em qualquer área, não só uma arrogância, como algo que pode descambar para um elitismo, quando isso se torna barreira para o acesso ao conhecimento sobre o que se dúvida – o objeto da pergunta. É também uma atitude de conservadorismo, comparável àqueles românticos que, contra o racionalismo revolucionário francês, queriam manter o irracionalismo da tradição místico-religiosa. É uma atitude comparável às antigas seitas e ao que faziam os “sábios” videntes da Grécia antiga: nada mais, nada menos do que impedir o acesso ao que se quer saber aos não-iniciados – atitude contra a qual se voltaram primeiramente os guerreiros gregos e em seguida os filósofos, e que é contrária ao principio de isonomia que está na base da democracia e da racionalidade. Querer restringir o uso da razão em relação a qualquer coisa terá sempre como conseqüência uma má herança destas atitudes elitistas e conservadoras.
            Quando alguém não entende, não conhece, o mais comum é ou perguntar; quando a pessoa se cala, isto pode ser sintoma de uma timidez ou medo de parecer menos inteligente que os demais “sabidos”. Pelo menos “perguntar” foi o que todas as professoras nos ensinaram.
            Mais recentemente há uma crescente onda de desprezo pelo ato de perguntar: duvidar é “querer saber” (o que não vejo problemas), ou melhor, “querer dominar” (e aqui entendo a crítica). Obter uma resposta, pensam, significa se satisfazer, sentir um gozo por dominar o objeto de conhecimento e poder utilizá-lo, obter uma definição que “fecha” a possibilidade de novas definições e percepções por sobre o objeto, etc.
            Ora, se isso tudo é verdade, eu não veria problemas em sentir um prazer por conhecer um objeto (dominar); acho até mesmo natural ao ser humano, uma vez que esse conhecimento foi possibilidade de sobrevivência da humanidade por sobre a Terra – como pensam os sociólogos Theodor Adorno e Max Horkheimer. E acredito que todo animal (classe da qual os humanos fazem parte) gostam naturalmente de sobreviver...
            Agora, se querer saber significa “querer dominar”, no sentido de obter uma definição imutável e que leva a pessoa a acreditar que sabe tudo sobre o objeto, então há um problema, já que quase sempre (ou sempre) as definições dos seres humanos sobre as coisas estão equivocadas e precisam ser revistas e porque nunca a fruição de um objeto pode se esgotar tão facilmente.
Mas não parece que seja verdade que seja assim. Uma pessoa que tem uma definição como resposta a uma questão do tipo “o que é...?” não fica satisfeita e pensa saber tudo sobre aquilo. Há, por outro lado, uma caricatura de que as coisas ocorram assim, inspirada talvez por uma visão de que em uma sociedade como a atual, na qual “a ciência ocupou o lugar que outrora foi da religião”, as pessoas se satisfaçam com definições objetivas e “reducionistas” sobre as coisas. Bem, é preciso demonstrar que as pessoas realmente ajam assim de forma tão estúpida (algumas dezenas de exemplos me convenceriam); sabemos que, pelo menos os cientistas não o fazem: se tomarmos o exemplo mais costumeiro, a “água”, vemos que os cientistas não pararam suas pesquisas quando descobriram que a água é H2O, pelo contrário, prosseguem buscando mais informações, com vistas até mesmo de solucionar questões como reproduzir a água.
Na verdade não acredito que haja definições suficientes para os objetos, ou seja, que um objeto possa ser definido em todo o seu grau de potência. E isso não é nenhum problema para o conhecimento ou para a possibilidade de nos comunicarmos. Wittgenstein em suas Investigações Filosóficas diz algo que deveria parecer óbvio que é o fato de que não precisamos de definições para saber o que significa uma palavra. As pessoas geralmente não têm definições claras das palavras que utilizam e isso não impede seu uso e a comunicação: para o filósofo, o significado de uma palavra se dá no uso. Eu por exemplo não sei definir “amor”, mas sei o que a palavra significa. E melhor ainda, sei utilizá-la de forma eficaz! Sei distinguir “amor” de ciúme, de carinho, raiva, etc. E isso não me leva a pensar que sei tudo sobre o amor. É possível até que se um dia eu chegasse a pensar que sei tudo sobre o amor, eu estivesse enganado; é possível que o amor se modifique ao longo do tempo e ao longo dos séculos, que seja, pois, um conceito “aberto”, não passível de ser definido.  
Assim, se alguém me perguntasse o que é o “amor”, eu não saberia dar uma definição, mas poderia tentar esboçar uma possibilidade de acesso para essa pessoa a partir de características vagas. Como é possível que essa pessoa me entenda eu não sei, e isso é motivo para muita controvérsia entre filósofos da linguagem. Mas o que quero chamar atenção aqui é a possibilidade de darmos explicações sem esgotar o objeto em uma definição “fechada”.  
Da mesma forma que não haja problemas para o conhecimento aqui, também não deveria haver o temor de que a dúvida, o desejo de explicações, descambe para um reducionismo. Porém, é o que ocorre muitas vezes, nas mais diversas áreas, mas muito comumente nas artes, especialmente em relação às chamadas artes contemporâneas, como por exemplo, a performance.
Talvez mesmo porque haja um afastamento da arte contemporânea da sociedade (seja ele justificado ou não – não cabe discutir aqui), há uma grande demanda de explicações a seu respeito, inversamente proporcional à falta delas. Pelo que dizem normalmente aqueles que são interrogados parece mesmo haver o temor acima citado, que leva muitas vezes ao desprezo pela pergunta, figurado em uma tergiversação em relação ao problema da suposta necessidade das definições demandada pela sociedade cientificista. 
Que esse temor possa ser justificado por uma idéia distorcida de que a sociedade foi realmente tão infantilizada pelo cientificismo (exceto, claro, tais pessoas), é amplamente compreensível, porém, tal atitude apenas ratifica a situação atual de afastamento das artes em relação às grandes massas, culminando não só na repulsa pelo que há de mais avançado na arte contemporânea, mas no que é pior, na sua esterilidade: naquela costumeira frase “ah, isso deve ser arte”, que no fundo significa “isso não é pra mim”. E assim, coisas como a perfomance se tornam algo para os “eleitos”, que co-participam em seu desconhecimento de uma definição rígida, mas aos quais foi dada alguma porta de entrada, talvez porque, como “eleitos”, não se temia que esperassem por uma definição “científica” de performance e lhes foram descritos traços fundamentais a seu respeito, como por exemplo, o de que não pode ser definida em um conceito fechado – o que não deixa de ser uma explicação racional, mesmo que porventura mal feita.
            E assim, podemos perguntar, por que é que algumas pessoas podem receber alguma explicação enquanto outras não? Não querendo cair em um erro comum às pessoas que realizam críticas, que é atacar supostas más intenções subjetivas, em primeiro lugar, pois, não tenho acesso a elas e em segundo porque não acredito que sejam ruins neste caso, suponho ser plausível apontar que, de qualquer forma, fatos assim servem com sucesso ao conservadorismo da sociedade dividida tradicionalmente entre as elites culturais e as massas, embora a própria performance art, como muito do que se faz hoje em arte contemporânea tenha surgido na contramão disso tudo: mas é muito mais comum do que se imagina que o conservadorismo e atitudes elitistas estejam amplamente intrincadas nas que se pretendem revolucionárias.

(Ouro Preto, 24 de maio de 2012)

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